domingo, 27 de junho de 2021
O comunista do café Rian - Start
Chapter 6 - As donas boas
Chapter 5 - Imaginação
Chapter 4
No final do ano, a casa ficava cheia. Meus tios chegavam para o Natal e o Ano-Novo com malas, filhas e todo tipo de novidades. Meu avô recebia todos na casa com muito orgulho e sem parcimônia.
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| Amigo da Onça |
Chapter 3
E assim minha visão foi se abrindo. Na verdade, eu era limitado como todo garoto da minha geração. Buscava-se conhecimento sobre coisas simples apenas na sala de aula. Fomos adquirir uma TV somente em 1972; informação mesmo, só quando íamos à casa do vovô.
Meu avô, viúvo, mecânico naval aposentado, trabalhou parte de sua vida embarcado. Morava com Maria Antônia, prima da falecida vovó, hábil costureira que se acomodou na casa desde jovem, quando veio para a cidade trabalhar na fábrica de Fiação & Tecidos, e por ali ficou até seus 99 anos. Solteira convicta, Bibi, como era chamada pelas crianças, dormia em um quarto contíguo ao do vovô, unidos por uma porta que permanecia sempre aberta.
O velho havia adquirido uma habilidade espetacular com torno e forja, graças ao tempo que esteve embarcado. Contava que, muitas vezes, teve que fabricar peças para consertar o velho vapor balizador Benjamin Constant, enfrentando fortes ventos sudoeste no meio da Lagoa dos Patos, tendo que escapar da depressão da Feitoria para não encalhar.
continua...
Chapter 2
No mais, tudo era paz. Meus tios
tinham uma preocupação quase obsessiva com o bem-estar dos vizinhos. Nossas
conversas eram sempre aos cochichos, eu não entendia bem o porquê. Caminhava-se
nas pontas dos pés, arrastar uma cadeira nem pensar... Manias! Coisas de gente
da capital, casal sem filhos. Que mal faz arrastar uma cadeira?
Antônio Merdaco também tinha seu
histórico no serviço de saneamento. Pelo nome, já se imagina com o quê lidava.
Mas isso não vem ao caso, ou talvez venha, num outro dia, com mais tempo e
menos pudor.
Eu, por ser convidado, cumpria
todas as exigências no pequeno apartamento da família Caetano. Tomava banho
todos os dias, escovava os dentes, brincava silenciosamente com a escova de
chão, meu fusca imaginário. Uma vez, em companhia do meu querido avô, ficamos
por horas admirando, numa vitrine da Galeria Otávio Rocha, um fusca bombeiro
bate-volta. Eu, com minha imaginação fértil, acreditei que seria presenteado
com aquele brinquedo. Sonho com ele até hoje.
Na falta do fusca, servia-me a
escova de chão. Nunca tive brinquedos de menino em minha infância, coisa rara
para os filhos dos proletários naqueles tempos. A infância era feita de
improvisos, de sonhos moldados com o que se tinha à mão. E, curiosamente, isso
não nos tornava menos felizes. Pelo contrário, talvez nos tornasse mais
criativos, mais resistentes, mais atentos às pequenas alegrias.
E assim, minha visão foi se abrindo. A capital me mostrava um mundo diferente, mais silencioso, mais contido, mais cheio de regras não ditas. Mas também cheio de livros, de aromas, de descobertas. Era como se eu estivesse entre dois mundos: o da Vila do Sapo, com sua espontaneidade ruidosa e personagens inesquecíveis, e o da Rua Vasco Alves, com sua elegância contida e seus rituais silenciosos. E eu, menino curioso, aprendia a transitar entre eles, absorvendo o melhor de cada um.
sábado, 26 de junho de 2021
Chapter 1
Já passava, brincando, da metade da década de 60 quando fui apresentado às colunas do Café Rian, no térreo do Edifício Santa Cruz, ali na Rua da Praia, em Porto Alegre. Era um local frequentado por jornalistas, políticos, profissionais liberais, jogadores de futebol, estudantes e uma boa parte da burguesia, que fazia questão de passar por lá só para ser notada por algum colunista ou jornalista novato. Sem matéria, muitos usavam essas aparições para promover nomes e alimentar as páginas sociais.
Eu, rapazote com pouco mais de 12 anos, viajava
para a capital durante as férias de verão e me hospedava no apartamento de meus
tios. Ela, professora do Estado; ele, economista do Deprec e professor na
PUC-RS. Um casal sem filhos que dividia o pequeno apartamento da Rua Vasco
Alves, nº 229, entre as ruas Riachuelo e
Andradas, no centro histórico da capital gaúcha, com sua mais que secretária,
Divah, que os serviu até o fim da vida com dedicação e afeto
quarto, biblioteca e banheiro social com banheira e junker a gás, coisa fina para a época. Havia ainda uma pequena área de serviço ao lado da cozinha, onde se podia ouvir as conversas dos vizinhos e espiar o edifício ao lado, como quem assistia discretamente a um teatro cotidiano.
Eu dormia na biblioteca. Improvisava a cama em
uma poltrona reclinável que meu tio usava para ler seus livros e organizar suas
coleções. Ele adorava livros! Tinha uma curiosidade intrínseca sobre tudo,
pesquisando a fundo qualquer assunto apenas para ter argumentos e fundamentos
nos arrancarrabos da época com os colegas da repartição. Colecionava selos,
moedas, discos e vinhos portugueses. Comprava todas as revistas e jornais,
estava sempre bem informado e gostava de conversar com precisão e entusiasmo.
Na sala, um sofá de canto forrado com plástico
transparente, onde não se podia pôr os pés, dividia espaço com uma mesa de
tampo em mármore. No canto oposto, em frente, uma TV Philco Predicta de última
geração nos trazia as informações do mundo pelos dois canais disponíveis: TV
Piratini, canal 5, da Rede Tupi na época, e TV Gaúcha, canal 12, afiliada à TV
Excelsior.
Eu amava o conforto daquele lugar. As coisas
todas em seu lugar, o cheiro dos livros, o reflexo da luz nas lombadas
multicoloridas, o perfume da cola dos selos, a comida feita por Divah e o
silêncio, que só era quebrado pelo zunir dos bondes freando na curva da Rua
General Salustiano, logo abaixo dos fundos do apartamento. Da janela da
biblioteca, tinha-se uma visão completa da Usina do Gasômetro e sua magnífica
chaminé, que parecia vigiar a cidade com imponência e nostalgia.
No mais, tudo era paz. Meus tios tinham uma preocupação
quase reverente com o bem-estar dos vizinhos. Nossas conversas eram aos
cochichos, eu não entendia bem o porquê. Caminhava-se nas pontas dos pés,
arrastar uma cadeira nem pensar... Manias! Um dia eu entenderia. Talvez fosse
respeito. Ou talvez fosse apenas o modo como se vivia naquela época: com
discrição, com cuidado, com uma elegância silenciosa que hoje parece esquecida.






