A cidade parecia respirar por entre frestas. As paredes da repartição Pública guardavam mais do que arquivos e documentos, sussurros, olhares desviados, e uma tensão que se podia cortar com o fio de uma folha de sulfite rasgada. Desde que a pasta vermelha fora mencionada por um funcionário distraído, o clima entre os frequentadores mudara. Ninguém mais confiava em ninguém.
O “professor” chegava como sempre, mas agora os
livreiros hesitavam em cumprimentá-lo com o mesmo entusiasmo. Um deles, o velho
Silvério, passou a observar seus passos com olhos de quem já vira gente
desaparecer por menos. “Ele anda anotando demais”, murmurou certa vez, enquanto
folheava um exemplar de Gramsci com dedos trêmulos.
Na Rua dos Andradas, a vendedora de ervas não
contava mais causos. Ela apenas olhava para os lados antes de falar, e suas
palavras vinham envoltas em metáforas. “Tem gente que planta arruda, mas colhe
denúncia”, disse, ao entregar um saquinho perfumado a um rapaz de boina que
ninguém conhecia.
No Grupo de Teatro Porão, os ensaios passaram a
ser fechados. Alaya, sempre observador, notou que os textos estavam sendo
reescritos com menos crítica e mais evasivas. “Alguém está com medo”, disse a
Nilo, que agora evitava qualquer conversa sobre política. “Medo ou culpa?”,
retrucou Alaya, com um sorriso que não alcançava os olhos.
A pasta vermelha, agora quase uma lenda urbana,
parecia ter vida própria. Alguns diziam que ela mudava de lugar sozinha. Outros
juravam tê-la visto nas mãos de um faxineiro que nunca existiu nos registros. E
então surgiu um bilhete anônimo, deixado entre as centenas de ofícios e
requerimentos próximo a mesa da copiadora:
“O comunista está entre nós. Ele escreve com
tinta invisível e lê com olhos que não piscam. Cuidado com quem oferece
silêncio como resposta.”
A suspeita se espalhou como cerração sobre o
Guaíba. O “professor”? Alaya? Nilo? A vendedora de ervas? Silvério? Meu Tio? Até o zelador da portaria de entrada do prédio
da rua Prof Freitas e Castro, 170, passou a ser observado. Cada gesto, cada
ausência, cada frase ambígua era uma pista, ou uma armadilha. Nesse contexto eu agradecia pela pouca idade...
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