terça-feira, 12 de agosto de 2025

Charpter 19 - A senhora da repartição (suspeito 2)

Era uma tarde de chuva fina, daquelas que parecem lavar a cidade por fora mas deixar tudo ainda mais turvo por dentro. Meu tio, sempre apressado e com o paletó encharcado, me levou consigo aos escritórios da repartição pública. Disse que precisava “resolver um assunto delicado”. Não explicou mais nada. Eu fui, como sempre, calado, curioso, invisível.

O prédio era antigo, com escadas de mármore gasto e cheiro de papel velho. E foi ali, entre os corredores abafados e os sons abafados de máquinas de escrever, que a vi pela primeira vez.

Para um jovem da minha idade era uma visão e tanto!

Ela caminhava como quem não precisava pedir licença. Vestia um tailleur vinho que desenhava seu corpo com precisão matemática. Os saltos altos ecoavam como batidas de tambor em um desfile silencioso. Tinha cabelos escuros presos num coque firme, e olhos que pareciam saber demais. Não era jovem, mas havia nela uma beleza que não se explicava com juventude, era algo mais perigoso, mais afiado

Meu tio a cumprimentou com um aceno contido. Ela respondeu com um sorriso que parecia ensaiado, mas não menos eficaz. “Boa tarde, doutor”, disse, com voz firme e doce. E então olhou para mim. Não como quem vê uma criança. Mas como quem mede uma testemunha.

Ali, parado ao lado do meu tio, senti algo estranho. Não era desejo, nem medo. Era uma inquietação. Como se ela fosse uma peça fora do tabuleiro, mas que ainda assim comandava o jogo. Os funcionários pareciam se calar quando ela passava. Os papéis mudavam de lugar. As portas se fechavam com mais pressa.

Alaya diria que ela era “a sombra que sorri”. Nilo, se ainda falasse sobre política, talvez a chamasse de “a diplomata do silêncio”. E seu Agenor? Ele a observava com respeito, ou seria temor?

Na sala de arquivos, entre pilhas de documentos e estantes metálicas, ela abriu uma gaveta e retirou algo. Não era a pasta vermelha, mas um envelope com o mesmo selo. Meu tio fingiu não ver. Eu não consegui desviar o olhar. Ela me viu olhando. E sorriu. Um sorriso que não alcançava os olhos.

“Você é o sobrinho do doutor?”, perguntou. Eu apenas assenti. “Então preste atenção. Às vezes, o que parece não importar... importa mais do que tudo.” Sorriu sobriamente e jogou suas ancas em direção do meu corpo seguindo sua caminhada, ou desfile, por entre as mesas esparramando uma nuvem de aromas adocicados das colônias da Avon que lembravam muito a Pretty Peach.

Naquela tarde chuvosa, entendi que o Grupo Porão não era o único palco. A repartição também tinha suas cenas, seus personagens, seus roteiros ocultos. E ela, a mulher de curvas perfeitas e meia-idade, talvez fosse a autora de muitos deles.

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