domingo, 27 de junho de 2021

Chapter 2

No mais, tudo era paz. Meus tios tinham uma preocupação quase obsessiva com o bem-estar dos vizinhos. Nossas conversas eram sempre aos cochichos, eu não entendia bem o porquê. Caminhava-se nas pontas dos pés, arrastar uma cadeira nem pensar... Manias! Coisas de gente da capital, casal sem filhos. Que mal faz arrastar uma cadeira?

Eu, criado na Vila do Sapo, não compreendia essas preocupações. Nossos vizinhos não eram tão exigentes assim. Nunca vi o Antônio Merdaco ou o João Louco, o corno mais feliz da Vila do Sapo, reclamarem de qualquer vozerio mais alto na avenida onde morávamos, no Bairro Nossa Senhora de Fátima. E por falar em João Louco, esse mereceria um capítulo à parte. Quem sabe um dia ainda escrevo sobre a forma como ele se esquivava, quase com elegância, para deixar o caminho livre para o "Cabelinho", sujeito de boa aparência, traje refinado, mas gosto estranho para mulheres, chegar até a cama da dona Z, esposa do corno João Louco.

Antônio Merdaco também tinha seu histórico no serviço de saneamento. Pelo nome, já se imagina com o quê lidava. Mas isso não vem ao caso, ou talvez venha, num outro dia, com mais tempo e menos pudor.

Eu, por ser convidado, cumpria todas as exigências no pequeno apartamento da família Caetano. Tomava banho todos os dias, escovava os dentes, brincava silenciosamente com a escova de chão, meu fusca imaginário. Uma vez, em companhia do meu querido avô, ficamos por horas admirando, numa vitrine da Galeria Otávio Rocha, um fusca bombeiro bate-volta. Eu, com minha imaginação fértil, acreditei que seria presenteado com aquele brinquedo. Sonho com ele até hoje.

Na falta do fusca, servia-me a escova de chão. Nunca tive brinquedos de menino em minha infância, coisa rara para os filhos dos proletários naqueles tempos. A infância era feita de improvisos, de sonhos moldados com o que se tinha à mão. E, curiosamente, isso não nos tornava menos felizes. Pelo contrário, talvez nos tornasse mais criativos, mais resistentes, mais atentos às pequenas alegrias.

E assim, minha visão foi se abrindo. A capital me mostrava um mundo diferente, mais silencioso, mais contido, mais cheio de regras não ditas. Mas também cheio de livros, de aromas, de descobertas. Era como se eu estivesse entre dois mundos: o da Vila do Sapo, com sua espontaneidade ruidosa e personagens inesquecíveis, e o da Rua Vasco Alves, com sua elegância contida e seus rituais silenciosos. E eu, menino curioso, aprendia a transitar entre eles, absorvendo o melhor de cada um. 


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